sábado, 14 de agosto de 2010

Refletindo no deserto

- Esqueça a sede. A água não existe! – pensou um turista raivoso e desesperado consigo mesmo.

- Como chegou a tal conclusão? Bem, é uma longa história.
Seu nome era Simão. Como se meteu naquela situação constrangedora? Bem, ele, que morava numa cidade grande superpovoada, com filas enormes de trânsito e todos os lugares imagináveis lotados de pessoas, sempre se interessou por desertos. Então, certo dia, ao planejar as suas próximas férias, viu uma promoção do governo do Egito e comprou um daqueles “pacotes” numa agência para conhecer o Saara com um grupo de turistas. Não que ele gostasse de excursões. Na verdade, preferia viajar sozinho pelo mundo, aventurando-se sem ninguém para incomodá-lo ou ameaçar sua liberdade. Mas como já havia ouvido coisas terríveis que aconteciam com turistas no deserto, pensou que talvez fosse mais seguro viajar com um grupo.

Já nos primeiros dias, ele que não era lá muito sociável, resolveu separar-se um pouco do grupo para observar um animal típico da região, que não podia deixar escapar da sua câmara. Por via das dúvidas, o guia turístico havia combinado o local de encontro do grupo daí a alguns minutos de exploração livre, próximo a algumas palmeiras que apontavam para um oásis mais adiante. Acontece que Simão também não tinha grande senso de direção e acabou se perdendo nas redondezas. Após perseguir o animal por algum tempo e finalmente conseguir tirar a foto, ele olhou em redor triunfante, supondo que os outros pudessem estar observando o seu feito.

Mas quando não viu nada além de dunas, passou-lhe pela cabeça que pudesse estar perdido. Depois de andar um pouco na direção que supunha ser oposta àquela que havia tomado atrás do animal, visualizou uma palmeira e correu esperançoso em sua direção. Mas logo viu que não podia ser o ponto de referência certo, pois não havia ali nenhum oásis. Não precisou muito mais do que isso para ele entrar em pânico e começar a correr sem direção para o nada. A paisagem era tão igual para todos os lados que parecia impossível ter um ponto de referência. E como ventava muito, sabia que não adiantaria seguir as próprias pegadas de volta. .Na verdade, esta possibilidade nem lhe havia passado pela cabeça, dado o estado de nervos em que se encontrava.

O sol queimava quente sobre sua cabeça. Parecia fritar-lhe os miolos e roubar-lhe a capacidade de pensar. O calor sufocante e a interminável areia pareciam penetrar nas suas narinas e pulmões. Impiedosas, elas irradiavam luz e calor, espantando qualquer tipo de sombra, condenada à morte antes mesmo de sua uma tentativa de formação. Como seria bonito aquele cenário em outras circunstâncias... De tão apavorado, Simão nem parou para admirar o fantástico o jogo de luzes refletidas de forma caleidoscópica pelas dunas. O que ainda o movia era a esperança despertada por cada nova duna de encontrar por trás dela a mais bela praia, repleta de turistas, uma infinidade de quiosques e vendedores de água de coco.

Como ele estava louco para encontrar uma sombra mínima que fosse, ao menos para descansar os pés que os sapatos já não davam conta de proteger da areia escaldante.

A cada passo que dava, mais se arrastava, e mais crescia a saudade de uma confortável rede estendia entre duas frondosas palmeiras e um copo de água gelada. Até então não havia se dado conta da maravilha que era a água, principalmente em estado líquido e refrigerado...

Neste espírito nostálgico, ele lembrou que havia tido ambas as coisas em abundância há poucas horas atrás, em sua casa e escritório sem jamais ter atentado para o seu valor. Mas agora, dizia sua mente ainda lúcida, tinha que ser frio e encarar o fato de que estava mesmo perdido. E que estava com sede, muita sede sem qualquer perspectiva de saciá-la. Então, a única saída era arrancar da sua mente qualquer pensamento ou associação ao abençoado líquido. “Esqueça a sede”, dizia a sua mente racional. “Esqueça, esqueça, esqueça a sede”, repetia, como se fosse uma ladainha ou marchinha de soldado.

Paradoxalmente, porém, quanto mais ele se esforçava por repetir essa ordenança, mais nitidamente surgia diante dos olhos de sua imaginação a imagem de um copo suado do precioso e gelado líquido.

Assim, o peregrino foi se conformando com o seu antes desconhecido ambiente, reparando nas pequenas diferenças entre uma formação de areia e outra. Era ao menos uma distração na sua saga pouco esperançosa. Esta experiência, que lhe trazia um lampejo de esperança no fim do horizonte da sanidade, fê-lo lembrar das há muito esquecidas palavras sábias de um beduíno que ele conhecera na sua infância. Dizia ele:

- Se por acaso um dia você se perder no deserto, não se impressione com o que você vir. O deserto pode ser um lugar horrível, mas somente para aquele que não o conhece a fundo. Na verdade, trata-se de um lugar incrivelmente maravilhoso, desde que você tenha os olhos certos. No fundo ele é um reflexo de você mesmo. Basta regá-lo que acabará encontrando o caminho certo, de retorno a si mesmo, que é o caminho para Deus. Estava aí todo o segredo. A miragem pode não ser tão boa, quanto o oásis de verdade, mas é melhor do que a alucinação.
Recordando estas palavras, nosso infeliz e desnorteado peregrino pensou:

- Agora que estou de fato perdido nesse deserto, terei ao menos a chance de testar as palavras de tantos sábios e profetas.
Infelizmente, porém, a cada passo que ele avançava, mais obscuras iam ficando as palavras esperançosas do beduíno. Com o tempo e o aumento da sede e cansaço, elas passaram a se tornar cada vez mais distantes, estranhas, obscuras e até sinistras.

Só podia ser ironia ou algum jogo! Era simples demais para ser verdade! Como alguém podia esperar que ele, pessoa esclarecida, pudesse dar crédito a miragens!
Com um esforço hediondo, ele expulsou todos os pensamentos improdutivos e que o faziam sofrer. Estava mesmo decidido a deixar para trás toda e qualquer esperança associada àquelas imagens enganosas e perigosas e conformar-se com a situação. Não valia a pena ficar sonhando com o bendito líquido, uma vez que ele não estava presente. Era melhor esquecê-lo o mais rápido possível. Afinal, quem sobreviveu à selva de pedra acharia um modo de viver ali, sem depender de água alguma. Se não tinha como saciar a sede, era preciso negá-la, juntamente com a água. As forças evolutivas certamente lhe dariam essa capacidade, por uma questão de sobrevivência e perpetuação da espécie.

E de fato, nessa nova empreitada, a cada hora que passava nessa peregrinação, mais remota se tornava a idéia de água ou qualquer coisa parecida, convencido que estava de que era preciso substituir toda e qualquer alusão à água ou bebidas por imagens “pé no chão”, como as de dunas e areia, levando em conta as circunstâncias em que ele se encontrava no momento.

Com isto, o viajante pegou passo firme e retomou à sua via dolorosa, em detrimento do peso da ausência do líquido bento. E conseguiu manter passo firme por bom tempo naquele estado de espírito resoluto, mas um tanto resignado. Como seria possível existir tal coisa misteriosa, que aqueles alquimistas supersticiosos chamavam de H2O? Porque ela não se revelaria, salvando-o daquela situação? Ficou quase envergonhado da quantidade de anos que Havia passado acreditando no que não poderia ser mais do que produto de sua imaginação. Como podia ter ficado tão iludido, cego diante dos fatos? Mas agora ele tinha um saber renovado, que ninguém podia lhe roubar. Agora era um iluminado, que via para além daquela paisagem árida e uniforme, das dunas e mais dunas sem fim...

Lembrou-se então de um dito que havia lido em algum lugar: “Nada há de novo debaixo do sol. Tudo é vaidade e correr atrás do vento”. Que grande verdade! Iludir-se com a idéia de água, sem dúvida não passava de vaidade. Todos estes pensamentos repetiam-se cruelmente e sem cessar, insistentes. Eram a mesmice e o tédio em pessoa. Quase levaram nosso turista à loucura.

Toda aquela beleza do crepúsculo só podia ser enganosa, pois quem é que poderia saber o que traria o amanhã? Caiu a noite. Nosso turista, de tanto cansaço, quase não foi capaz de reparar no céu magnificamente estrelado. Não obstante, o frio intenso o impedia de dormir. Nem mesmo a aurora de um novo dia foi capaz de renovar-lhe a esperança. Lá pelo meio dia, entretanto, sua sorte começou a mudar. Avistou ao longe a imagem distorcida do que lhe parecia o paraíso:

- Que maravilha! Parece que há um lindo oásis logo ali. Um lugar onde deve manar leite e mel.

Passado o entusiasmo da visão, entretanto, o turista recobrou seu antigo ceticismo, desconfiando de tanta felicidade. Começou a perguntar-se: seria aquilo realidade, ou outra daquelas ciladas e artimanhas da vida?
Tais reflexões reprimiram o seu primeiro ímpeto de sair correndo em direção à visão. Mas, felizmente, a lembrança das palavras do seu mestre veio-lhe de novo à mente, e agora com a conclusão:

- No deserto costuma ocorrer um fenômeno mais conhecido por miragem. Ao contrário do que pensam os que não aprenderam a conviver com as maravilhosas tragédias do deserto, a miragem não é produto de meros desejos ou alucinações absurdas, mas de uma realidade concreta. Ela pode não estar ao alcance da mão, mas lhe indica o caminho e renova a sua esperança. O oásis está aí, sim, mais concreta e objetivamente do que se possa imaginar, mas muito além do nosso cálculo racional.

Então depende de você arriscar-se a persegui-la ou não.
Munido destas sábias palavras e mais sedento do que nunca pela aridez que tinha tomado conta de sua mente, alma e imaginação, nosso peregrino fixou os olhos na sua miragem e, passo após o outro, ainda que trôpego, seguiu o seu caminho... E, a estas alturas, já deve ter chegado...

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