sábado, 14 de agosto de 2010

Conceição (in memoriam)

Era uma vez uma moça que nasceu em berço esplêndido. Conceição era filha única e herdeira do Doutor Rudy, um bem sucedido bancário. Mas não parecia ser muito feliz, pois só sabia trabalhar e vivia em função de um só objetivo: ganhar dinheiro. É claro que esse objetivo lhe rendeu várias coisas boas na vida: uma situação financeira privilegiada, uma família (quase) perfeita, funcionários comprometidos com o banco. Ele tinha prazer e orgulho não apenas de empregar pessoas e as sustentar, mas também proporcionar-lhes cultura e lazer, conforto, a melhor possível educação, coisas de que ele mesmo nunca havia desfrutado, nem passou a desfrutar depois de se tornar rico. Ele tinha prazer em liderar pessoas que dele dependiam em lhe mostravam dedicação e lealdade.
Sua esposa e filha, apesar de lhe serem muito gratas por todos os bens matérias que lhes legava, ressentiam-se de sua ausência quase que total do lar. Ele viaja muito e quando estava na cidade, gastava todo o tempo e mais um pouco para apagar fogueiras e dar conta do serviço atrasado. A situação piorou, depois da perda de sua esposa amada, Anamélia, vitimada pelo câncer, que dinheiro nenhum era capaz de derrotar.
Ao longo dos anos de idas ao médico, quimioterapias com perda de cabelos e de toda e qualquer forma de orgulho ela havia mais do que provado sua coragem e força, para além de todo aquele sofrimento. Dr. Rudy não teve como deixar de se culpar, não pelo que o devia envergonhar, mas por não ter se empenhado mais no trabalho para impedir tudo aquilo. Ele parecia não perceber que o trabalho faz tempo havia se tornado uma válvula de escape à qual aderia automaticamente, sem notar o absurdo de depositar nele poderes milagrosos.
Ao invés de aproveitar a oportunidade para se aproximar mais da filha, depois da partida de sua mulher, o empresário tornou-se ainda mais ausente da vida de Conceição, filha única assim chamada em homenagem à santa à qual sua mãe era devota. Se ela já recebia do bom e do melhor antes da morte da mãe, agora era ainda mais paparicada como legítima herdeira que era da fortuna de seu pai. Com a chegada da adolescência e seus problemas típicos, Conceição acabou se envolvendo com as pessoas erradas, que se aproveitaram de sua revolta contra o pai e toda aquela vida para criar um vínculo quase indissolúvel com ela.
Não demorou muito para ela se encantar com um jovem daquela “tribo”, que tinha como objetivo refutar toda a máquina capitalista pelo protesto “artístico”, um de seus líderes e começar a sair com ele. Depois de mais alguns meses, engravidou ainda na adolescência. Esse novo acontecimento serviu de motivo para mais humilhação, decepção e tristeza com seu pai, que não demonstrou a mínima compreensão ou compaixão pela situação em que viu sua filha. Como ele não acompanhava o que acontecia na vida dela, ficou em estado de choque ao ficar sabendo de tudo, quando ela já estava no quinto mês. Ele até havia brincado com ela que deveria parar de tomar tanta cerveja, batendo em sua barriga já protuberante.
Depois de se recompor um pouco, toda a vez que ele a avistava assim embuchada tinha vergonha e nojo e desaparecia. Se antes ele era ausente, agora ele agia com se Conceição estivesse com alguma doença contagiosa ou como se fosse uma morta-viva. Ele considerava o estado da filha uma ofensa incomensurável à memória de sua falecida. Ele nem quis saber quem era o pai (nem ele o sabia ou mostrara interesse) ou de que sexo era a criança, tamanho o amargor. Até que, pouco antes de chegada a hora de ela dar a luz, Dr. Rudy a chamou ao seu escritório para lhe comunicar que a estava expulsando de casa, praticamente com a roupa do corpo, além de deserdá-la, na tentativa desesperada de esquecer que sequer tinha uma filha.
- Mas pai não estou preparada para sobreviver e sustentar o nenê sozinha – soluçou ela, com a coragem que ainda lhe restara depois de tanta tortura emocional, pois ainda mal havia terminado o ensino médio. O dinheiro da herança ela queria mais é que o pai levasse junto com ele para o inferno. Seu maior problema era que não sabia ao certo como fazer para garantir uma gravidez tranqüila e um parto normal. Pois seu filho era a única coisa que lhe restava agora.
Mas quando viu que o pai já lhe havia dado as costas e batido à porta na sua cara, Conceição resolveu procurar uma parente distante que morava numa cidade também distante e que sabia que também era mãe solteira. Ela certamente teria compreensão e lhe ensinaria tudo que precisava saber para que tudo transcorresse bem. Quanto mais longe ela pudesse estar da cidade e consequentemente do seu pai, melhor.
Depois de fazer as malas aos soluços de decepção pela frieza e dureza do pai, ela foi comprar uma passagem com o resto de dinheiro que ainda tinha na carteira, para a cidade da sua parente, no interior da Bahia. Conceição lembrava que Anacleta, à semelhança de Conceição, havia engravidado na adolescência sem que o pai soubesse ou pudesse contar com o apoio dele. Desde então, ela havia sobrevivido e cuidado da sua filhinha sozinha, sem ajuda de ninguém. Certamente Anacleta seria muito mais compreensível do que os demais parentes ou “amigos” dela, que não passavam de bajuladores do Dr. Rudy. A decisão confirmou-se, quando ela conseguiu achar uma carta que a meia prima lhe havia enviado algum tempo atrás.
Arrastando as malas com alguns poucos pertences e algumas jóias que eram suas únicas posses, ela saiu pela porta dos fundos da sua ex-casa, dirigindo-se à rodoviária, que ficava a mais de cinco quadras dali, para se dirigir ao endereço da carta. O pai nem sequer havia oferecido carona do motorista para levá-la até lá, em consideração ao seu estado.
Depois de aproximadamente de\z horas de viagem por estradas esburacadas e muitos sacos cheios de vômito depois, ela finalmente chegou à rodoviária da cidade interiorana. Assim que chegou, procurou uma lista de endereços e usou o último cartão de telefone que lhe restara para ligar para Anacleta.
Do outro lado do Brasil, o pai de Conceição dava continuidade à sua vida mesquinha, repleta de compromissos e atividades de negócios e vida social. Eventualmente pensava na filha, mas pensava logo também na mãe e o quanto ela a havia difamado. Já havia se acostumado a empurrar pensamentos desagradáveis o mais longe possível, jogando-se desenfreadamente no trabalho.
Até que certo dia aconteceu algo inusitado: Dr. Rudy havia mais uma vez abusa do trabalho vindo a desmaiar de cansaço em cima de uma pilha de papéis sobre a sua escrivaninha. Ele se encontrava completamente só no escritório. Provavelmente isso se devia ao seu estresse e má alimentação. O fato é que quando despertou não se viu mais no escritório, mas encolhido e como que preso dentro de um saco escuro, em que ouvia diversos sons estranhos, que mais pareciam com ruído do mar ou o borbulhar de água fervendo. E o que era mais interessante: ele sentia como se estivesse imerso em algum líquido, mas não sentia falta de ar.
Toda a vez que ele tentava se esticar parecia que algo o prendia pelo umbigo. Com o tempo e a recuperação de sua consciência, cresceu o pânico e vontade louca de sair dali. Começou então a espernear feito desesperado até cansar.
Daí a mais algumas horas, começou a se auto-analisar e pensou: “Isso só pode ser castigo pelo que fiz com a minha filha. No fundo, ele se detestava por ter agido daquela forma. Admitia que fora por puro egoísmo, excesso de rigor e insensibilidade que havia agido assim. Na verdade estava mesmo era atemorizado feito uma criança, sem saber o que fazer daquela situação e procurando por culpados pela morte da minha querida Anamélia.” Esses e outros pensamentos foram agindo na alma e entranhas do magnata, até que o desespero se tornou em arrependimento até chegar à profunda contrição.
Depois de mais algum tempo, para o seu máximo terror, a bolsa em que ele estava preso pareceu romper-se e ele se viu como que arrastado pela correnteza, até se ver novamente preso. Depois de vazado todo o líquido, eis que uma luz surgiu em algum lugar acima da sua cabeça e ele sentiu como que umas mãos puxando-o pela cabeça e ombros. Para o seu terror, parecia que alguém o puxava através de um buraco e em mais alguns segundos, ele sentiu o impacto do frio do mundo lá fora, que passou a ver de ponta-cabeça, uma vez que alguém o pendurara pelos pés. As palmadas que sentia no traseiro nem teriam sido necessárias, pois de repente, ele sentiu uma irresistível vontade de chorar e gritar e aquele grito parecia lavar-lhe profundamente a alma. Parecia que ele estava respirando pela primeira vez.
Então ouviu uma voz grave e aveludada lhe dizendo:
- Você é o único do mundo que já ouviu, viu e sentiu com a mente de um adulto o que está vendo, ouvindo e sentindo. Mas lembre-se – continuou a voz - isso não faz de você nenhum Deus. Por alguns segundos – continuou a voz -, que certamente lhe pareceram horas, coloquei você no lugar do seu netinho que está nascendo nesse mesmo instante. Mas eu o advirto para que dessa vez ao invés de alimentar o seu ego, essa experiência deverá mover o seu duro coração a fazer justiça à vida. Portanto, vá e concerte o seu erro, pedindo perdão à sua filha, antes que seja tarde.
A voz esvaeceu e Dr. Rudy caiu novamente em sono profundo.
Quando abriu os olhos, viu-se novamente deitado sobre a pilha de papéis de sua escrivaninha. Assim que recuperou a consciência, pegou o telefone e disse à secretária:
- D. Silvia, por favor, tente fazer um contato com minha filha pelo celular que lhe dei de presente. E por favor, cancele todos os meus compromissos por hoje e pelo resto da semana, pois tenho uma importante dívida para pagar. Uma dívida muito maior acabou de ser paga por mim...

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