segunda-feira, 22 de junho de 2009

S.I.G.L.A.

S.I.G.L.A.

Era uma vez uma S.I.G.L.A. Ela se achava muito importante, pois tinha sido concebida por gente extremamente distinta e inteligente, que a considerava a melhor invenção do planeta, já que criava uma reserva natural de mercado. Somente, eles, os I.N.I.CI.A.DOS (Instituto Nacional da Irmandade dos Cidadãos Anônimos Dominadores), conseguiam se comunicar, sem que os vilões da causa que defendiam, como pessoas que quase só sabiam falar palavras comuns, os assiglados, pudessem estragar tudo. Aliás, combater o assiglismo era uma das maiores missões dos I.N.I.CI.A.DOS.
S.I.G.L.A era um sujeito sem identidade, que vivia na boca do povo de M.E.C. (Mundo Educacional Caudaloso), mas ninguém sabia bem, o que significava, só os I.N.I.CI.A.DOS nos seus clubes e corporaçõe respectivos. Em suma, S.I.G.L.A. era solitária, por mais popular que pudesse se tornar por algum tempo. Ela já sabia que, exceto raras exceções como IPTU, U.S.P., C.P.M.F., R.E.N.A.V.A.M, M.S.T., C.P.F., e INSS, a maioria das siglas tinha vida mais ou menos curta (por ex. M.D.B., A.I.5, K.G.B.), e graças a Deus, já foram extintas.
O princípio era simples. Tudo o que pudesse ter algum significado importante para a missão da corporação ou grupo de interesse respectivo, era abreviado, com o intuito de que os não I.N.I.CI.A.D.O.S. na confraria não pudessem entender. E tudo isso, dissimulando uma pretensa democratização, inclusão e participação maior de toda a sociedade.
Você já não teve aquele grupo de amigos na infância com que adotou a língua do “p” para velar as mensagens secretas do grupo perante os outros? Era a solução para ações ousadas de revanche, imposição de poder e ocultamento de fofocas a respeito da vida alheia. Quem sabe você até já tenha inventado outra língua, à semelhança de gênios inconformados com a sociedade como J.R.R. Tolkien e outros autores famosos.
Quando se trata do universo infanto-juvenil é bom e até saudável usar esse tipo de recurso lúdico. Mas quando se trata do universo adulto, a coisa fica mais séria. Principalmente quando se está falando de campos importantes como o da saúde, da assistência social e da educação (por ex. S.U.S., I.N.P.S., I.N.E.P.).
Nenhuma dessas entidades deve ser tratada como sociedade secreta, como nos fazem suspeitar as tantas siglas, por mais que tais instituições mereçam nosso respeito. Elas são de domínio público, de propriedade de todo cidadão, que tem direito à contrapartida da sua cidadania, e dos impostos absurdos que paga. Somente se tiver acesso às informações ocultadas por trás da parafernália das siglas e instituições poderão reivindicar qualidade nos serviços e ensino e fazer a sua parte em relação à inclusão social, preservação do meio ambiente, responsabilidade social, etc.
Voltando à nossa história, nossa amiga S.I.G.L.A se sentiu em casa logo que nasceu em M.E.C., em que teria tantos colegas e amigos congêneres. Na verdade, tinha tudo a ver com o seu verdadeiro nome Sistema de Inspeção de Graduação Latino- Americano.
O mundo de S.I.G.L.A. era cinzento, mas parecia cor-de-rosa para ela, que nunca tinha visto outra cor e adotara o nome que todos adotavam para ela; barulhento e cheio de arquivos empoeirados. A alimentação do povo era muito simples e ecologicamente correta: eles se alimentavam de papel reciclável, basicamente leis, e computadores, igualmente recicláveis. E pode crer que reciclavam mesmo, pois das árvores e alumínio e ferro naturais já não restava nada naquele planeta.
Os habitantes “educados”, ou “siglados” que perfazia aproximadamente 20% da população, falavam praticamente só em siglas, exceto em raras exceções, de modo que as mensagens eram bem curtas, mas para isso, demandavam esforços dobrados de memória e conhecimento de causa, para se decifrar o sentido do que estava sendo dito.
Todos os dias aconteciam situações às vezes desastrosas, às vezes só embaraçosas, às vezes bastante hilárias ou até trágicas, envolvendo a má interpretação das palavras.
Somente para contar algumas: Certo dia um advogado, que pretendia defender o seu cliente, acusado de extorsão, ao ser perguntado sobre quais os maiores méritos do mesmo, disse:
- M.E.N.T.I.R.A.
Meritíssimo Ele Não Tem Inveja, Raiva Ou Ambições.
Ou quando a senhora representante da entidade das senhoras caridosas da cidade, ao ganhar o prêmio C.D.F. (Confiabilidade, decência e franqueza) e ser perguntada, o que mais deseja fazer na vida, agora que é famosa, respondeu:
- T.R.A.N.S.A.R.
Querendo dizer:
- Transformar a Sociedade pelo Amor e Respeito.
O exemplo tragicômico de que nos lembramos é do dia em que o noivo respondeu à noiva em pleno altar, que perguntava sussurrando, se ele já tivesse decidido, onde eles iam passar a lua-de-mel:
- I.N.F.E.R.N.O.
Querendo dizer: Iremos Nadar, Farrear E Rolar Na Oceania.
Não é de se estranhar que a noiva o mandou para lá sozinho, caindo no maior berreiro. Mas quem o mandou de verdade com um tiro na cabeça foi o sogro, que ouviu tudo.
Apesar dessas pequenas mazelas, S.I.G.L.A. sentia-se bastante bem no convívio com as pessoas que acreditavam nas abreviaturas, por serem assim tão práticas, modernas e “democráticas”.
E acreditava piamente que o que unia aquelas letrinhas era o A.M.O.R. O que ela não percebeu, foi que, ao contrário de caridade, respeito ao próximo e autosacrificio, para a maioria dos cidadãos de M.E.C. a palavra não passava de outra sigla: Associação de Meritíssimos Ostentadores de Regalias.
Quando cresceu, já na adolescência, S.I.G.L.A. percebeu que o seu mundo não era cor-de-rosa, mas cinza e que de amor, não tinha quase nada. Você nem imagina a decepção dela, depois de ter estudado tanta pedagogia, ao descobrir o significado de P.A.I.D.E.I.A. para os mequianos. Então, na primeira oportunidade, pegou um foguete para.a verdadeira Terra de Paidéia, um mundo, que os I.N.I.CI.A.DOS já haviam recalcado da memória há séculos e com o qual mal podiam sonhar.
Quem sabe, atitudes radicais como o de S.I.G.L.A. algum dia desperte os mequianos do seu sono pedagógico.

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